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Fica SUS

Ser favorável ao equilíbrio fiscal não significa opor crescimento econômico ao desenvolvimento social e humano

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Lígia Bahia

Atroca do soldado israelense Gilad Shalit por 1.027 prisioneiros, a maioria palestinos, e mesmo o sacrifício de um gorila de espécie ameaçada de extinção para salvar a vida de uma criança foram ações institucionais polêmicas. Parentes de vítimas manifestaram-se contra o acordo com o Hamas. A manutenção de animais em cativeiro e os perigos de interações artificiais com humanos também mobilizaram posicionamentos extremados. No âmbito das bravuras individuais, o elevado valor da vida humana impulsionou gestos para proteger desconhecidos como os do sargento Silvio Holenbach, que retirou um menino de um poço de ariranhas, e do músico Marcelo Yuka, tentando evitar um assalto. Em circunstâncias completamente distintas, os desempates se orientaram pelo provérbio do Talmud: quem salva uma vida, salva o mundo inteiro. Por outro lado, os atos suicidas terroristas, como o recente atentado no aeroporto de Istambul, foram movidos pela vingança e imolação individual em nome de um suposto bem comum.

Sistemas públicos de saúde pressupõem que o valor da vida de cada um é exatamente igual à dos outros, são projeções da coragem coletiva, todos salvam e são igualmente protegidos. Assim, organizam e atualizam a histórica experiência humana e as decisões políticas envolvidas com a prevenção de doenças e cuidados aos enfermos. Caracterizam-se pela preservação de valores solidários e investimentos crescentes das sociedades que os constituíram. No mundo, os gastos com saúde, especialmente os públicos, vêm aumentando, passaram de 3% do PIB em 1948 para 10% em 2013. Mas, no Brasil, os gastos federais com saúde como proporção do PIB mantiveram-se estáveis, enquanto a população crescia e envelhecia. Entre 2014 e 2015, houve retração porque os orçamentos da Saúde são vinculados à arrecadação e, portanto, ao crescimento econômico.

O SUS ficou no meio do caminho, a saúde é direito de todos, o acesso da população aumentou, mas persistiram problemas básicos de qualidade. Valores de igualdade e solidariedade misturaram-se com antigas e renovadas discriminações. Abriu-se uma cissura que pode ser compreendida como consequência de um processo de conflitos de interesses, no qual o público ainda se subordina ao privado, ou como defeito de fabricação.

Alguns economistas brasileiros julgam que o SUS está errado, justificam mais e definitivos cortes em função do mau uso que se faz das verbas para a saúde. Propõem que os que podem paguem, quem não o conseguir tenha uma assistência financiada pelos impostos e que o atendimento no SUS seja cobrado. Numa mesma frase expõem propostas diferentes, preveem ora o desmonte, ora a preservação dos centros de alta complexidade públicos. Então, ou a conversa não é séria, o fim do SUS é apenas uma ameaça, ficará tudo igual, mas pior, ou seria prudente e civilizado contribuir para um debate mais rigoroso.

O primeiro item de qualquer interlocução sensata sobre o SUS é o reconhecimento de que as restrições financeiras conjugadas a nomeações explicitamente clientelistas para o Ministério da Saúde, pelo governo interino, são a antítese do alocação eficiente de gastos. A seguir, é preciso não deixar passar em branco que a saúde foi objeto de cortes prévios e que as anunciadas medidas de limitação de despesas significariam perpetuar o desnivelamento. A terceira preocupação refere-se à relação entre a redução do peso da dívida e dos juros e impacto sobre as políticas sociais.

As divergências não são entre defensores irracionais e irresponsáveis de políticas universais e militantes perfilados para salvação da economia. Ser favorável ao equilíbrio fiscal não significa opor crescimento econômico ao desenvolvimento social e humano. A questão crucial é definir se recursos resultantes da equação menos divida e juros, mais investimentos, retornarão para assegurar o progressivo bem-estar social ou servirão para aprofundar as iniquidades.

Quando o assunto é SUS, alto lá. Passar a tesoura em políticas universais e manter as desonerações fiscais para determinados grupos de pressão é um requinte de crueldade. Em 2015, os gastos tributários do governo federal com saúde foram R$ 25 bilhões, um quarto do total do orçamento destinado ao SUS. Cortes de despesas que atingem a maioria da população e a reiteração da solicitude para direcionar fundos públicos para financiar gastos privados terão resultados previsíveis. Perderemos capacidade de resposta aos problemas de saúde. O enfrentamento de epidemias e realização de transplantes são atribuições públicas porque aplicamos regras elementares da organização de sistemas de saúde de países desenvolvidos. Nababos (expressão utilizada por um defensor da redução da política de saúde a um programa miserável para miseráveis), seja aqui, seja em países ricos, ficam em uma fila única de transplantes, entre outras razões porque não se encontra coração, fígado, medula, na prateleira, e sim dentro de seres humanos. O Brasil realiza transplante porque o SUS existe. A torcida para que pessoas possam continuar a viver, viver até melhor pós-transplante e o desvelo com o transporte dos órgãos e os critérios de prioridade para a definição de receptores existem porque somos sensíveis ao valor da vida.

Ligia Bahia é professora da UFRJ

ligiabahia55@gmail.com

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*Lígia Bahia

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Problemas não decorrem do SUS, mas de sua não implementação
Decisões movidas por diagnósticos equivocados e terapias tópicas, apenas gerenciais, mas anunciadas como mudanças drásticas, são causas indiretas de sofrimentos evitáveis. A saúde não está somente em crise, tornou-se um imenso problema crônico. Soluções improvisadas e choques retóricos podem acarretar novos problemas. As consequências da zika e o colapso de uma parte da rede de serviços no Rio de Janeiro, apesar das especificidades, não são fenômenos imprevistos ou eclosões acidentais. A opção por tratamentos enganosamente técnicos, rápidos, assépticos, não é proposital, resulta de uma forte atração por ações “politicamente imunes”, fundamentadas em falsa divisão de trabalho. Os puros, desinteressados, se encarregariam da busca de tecnologias sociais e gerenciais, enquanto que a mesquinharia e a corrupção ficariam sob a responsabilidade das instituições políticas.
Parcela considerável dos analistas de políticas públicas as concebe como processos movidos exclusivamente por interesses econômicos. Assim, as instituições políticas seriam dinamizadas por patológicos grupos contrários ao bem-estar público. A competição privada, em contraposição à saúde pública, evoca a livre escolha e o bom funcionamento do mercado e a falência da atuação governamental. Entretanto, essa divisão é artificial, as ações coletivas e individuais de saúde são fortemente regulamentadas.
Médicos não podem trabalhar sem diploma e registro em conselhos profissionais. E as acirradas polêmicas do século XIX sobre a obrigatoriedade da vacinação e proibição de produtos e substâncias nocivas versus o livre arbitrário ficaram para trás. Um mercado aberto e competitivo na saúde, que reúna vendedores e compradores de serviços e produtos para prevenção e cura, é uma miragem.
No dia a dia, os mais ardorosos defensores do equilíbrio entre demanda e oferta se desfazem da teoria do melhor custo-benefício sem a menor cerimônia. Aos primeiros sinais de adoecimento, ou mesmo para consultas rotineiras, correm em busca da excelência, de médicos formados e que estão vinculados a instituições e universidades públicas. Tudo muito bem regulamentado pelo Estado; e não deixam e pedir recibo para abater os gastos do Imposto de Renda.
No entanto, a reiteração da dicotomia público-privado desencadeia um crescente ceticismo na capacidade de intervenção governamental e estimula a preferência pelas alternativas baseadas na lógica do mercado, expressas em malsucedidas tentativas de salvaguardar a saúde de influências políticas. Como se a política pudesse ser colocada em quarentena. Claro que não pode, tanto que a saúde vem sendo invadida justamente por aquelas vertentes políticas, quase caricaturais.
As desastradas recomendações para as mulheres em idade fértil do atual ministro da Saúde ou a denúncia de contratação de um vereador (onipresente) pela empresa que faria uma gestão eficiente, sob a lógica do mercado de hospitais, refletem um preocupante afastamento da saúde pública das agendas de inovação, modernização e igualdade social. A comparação entre os currículos de ministros das área econômica e de saúde, quer se concorde ou não com suas ideias, esclarece qualquer dúvida a respeito da condição periférica do setor. A analogia vale para alguns estados e municípios. Quem se lembra do nome dos últimos secretários de Saúde do Rio de Janeiro, a não ser de quem foi acusado de desviar recursos? A caracterização da saúde como um negócio como outro qualquer, ironicamente, abre alas para o atacadão de interesses políticos particularistas. Gurus gerencialistas e seus sempre renovados clichês desenvolvem esforços e agitações respeitáveis.
Contudo, as promessas revolucionárias de poupar gastos desnecessários na saúde não deram certo em lugar nenhum. Acumulam-se evidências sobre a fragilidade de diversas fórmulas tecnocráticas de pagamento de médicos e hospitais e sobre propostas ingênuas de políticas saudáveis. Métodos e valores de remuneração de procedimentos embutem relações de poder. E todos morreremos, ainda que possivelmente mais velhos, menos doentes e mais autônomos, mas necessitando, ao longo da vida, de cuidados de saúde, sejam curativos ou paliativos.
O radicalismo dos jargões e o foco apenas em determinados aspectos administrativos impedem uma visão clara dos potenciais e entraves do conjunto do sistema de saúde. Graças à combinação da atuação política e mobilização de conhecimentos científicos e técnicos, o Brasil realizou uma reforma profunda na saúde. O SUS não é uma construção político-institucional trivial, e os problemas crônicos da saúde não decorrem de seus erros, e sim de sua não implementação.
A insistência na propaganda e nas ações centradas apenas nos focos domésticos de mosquitos, e não nos criadouros gerados pelas condições sanitárias; a “entrega de chaves” de hospitais públicos, como se fossem prédios comerciais, para outra esfera administrativa; a deterioração do programa nacional de imunizações, que precedeu e foi ampliado pelo SUS, são maus prenúncios. Instituições, redes sociais e entidades comprometidas com o desenvolvimento social não podem assistir de camarote ao isolamento político, à mediocridade e aos erros técnicos na saúde. A próxima reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social deve encorajar a inclusão de pontos sobre saúde na pauta, espera-se coerência de fóruns cujos nomes conectam políticas sociais e econômicas. O controle e tratamento da dengue, chicungunha e zika, o monitoramento das iniciativas do gabinete de crise no Rio de Janeiro e a avaliação pormenorizada da irregularidade e falta de fornecimento de vacinas requerem análises à altura do que o Brasil pode realizar.
Saúde é um desafio democrático, refere-se à plausibilidade dos compromissos e compatibilidade dos recursos alocados para os efetivar. Nas eleições municipais de 2016, a política de saúde e o SUS podem ser resgatados desde que liberados do confinamento e dos modismos, achismos e pilhagens.

Fonte: ABRASCO

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*Dra. Lígia Bahia (UFRJ / ABRASCO )

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vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).

Por Lígia Bahia

A instituição de duas filas nos hospitais universitários públicos expressa uma das mais visíveis anomalias da sociedade brasileira. A inversão do critério do atendimento prioritário aos portadores de problemas de saúde mais graves em favor do acesso facilitado para quem tem maior capacidade de pagamento, desnatura o caráter público dos hospitais universitários. Mais grave ainda: a introdução da lógica do mercado por hospitais públicos, mesmo que apenas em parte de suas instalações, representa um claro desacato ao texto constitucional, segundo o qual saúde e direito de todos e dever do Estado. A relevância do problema exige o exame detalhado de suas causas para que as instituições públicas de saúde possam ser devolvidas ao público. A edição e reedição de atos administrativos e a revelação do fato, especialmente de suas conseqüências são imprescindíveis, mas não bastam. É preciso que o ambiente favorável ao debate propicie uma reflexão aprofundada e corajosa sobre os componentes do material de construção das duplas portas. Entre os elementos que originaram as duplas portas de entrada destacam-se, para além do sub-financiamento do SUS, a concepção sobre a existência da divisão da população brasileira para fins de atenção à saúde em “não pagantes” e pagantes e a noção sobre a legitimidade e virtuosidade da “venda” de serviços de hospitais públicos. O primeiro elemento decorrente das restrições fiscais às políticas públicas é, indubitavelmente, o grande responsável pela privatização de hospitais públicos. De fato, só recentemente o Ministério da Saúde logrou encontrar uma fórmula de financiamento mais favorável aos hospitais universitários. Os dirigentes dos HU’s que optaram por abrir uma porta a entrada de clientes de planos privados de saúde enfrentam problemas de endividamento decorrentes da necessidade de contratação de pessoal. O segundo e o terceiro componente da matéria prima da dupla porta, embora guardem relação com o primeiro, apresentam uma natureza distinta. São menos tangíveis, mas acionam concepções e práticas profundamente incrustadas entre nós. Trata-se de uma derivação da velha e sempre renovada fórmula de oferecer políticas sociais distintas para pobres. . Se os hospitais, inclusive alguns públicos, são vistos locci de venda de serviços e existem compradores que pagam valores diferenciados pelo mesmo procedimento, nada mais lógico do que vender para quem paga mais. Seria ingênuo, portanto supor que as bases de construção de um arranjo institucional tão complexo foram erigidas sem apoio político, técnico e jurídico-legal. .Algumas dessas duplas portas foram, contraditoriamente, autorizadas pelo próprio Ministério Público que também as denuncia. Existe um projeto de lei na Câmara Federal que, se aprovado, lhes conferiria um estatuto legal. E, sobretudo, persiste entre profissionais de saúde e entidades sindicais, inclusive alguns extremamente bem intencionados, a certeza de que as duplas portas de entrada são benéficas, dadas as condições de penúria da maioria dos hospitais públicos. Nesse sentido, o desconhecimento sobre o conflito de idéias e as perspectivas diferenciadas sobre a organização do sistema de saúde brasileiro também cimenta a estratificação. Se, pelo contrário, as múltiplas dimensões e interesses envolvidos com a estruturação das duplas portas de entrada forem considerados poderemos responder, ainda que parcialmente e progressivamente, ao desafio implícito que a privatização de hospitais públicos nos apresenta. Para onde ruma o sistema de saúde brasileiro? Ou em outros termos, um sistema universal de saúde de qualidade é viável? Os que defendem a plena implementação do SUS costumam formular essas mesmas perguntas com um sentido inverso. Um sistema de saúde orientado pelo mercado seria capaz de responder as necessidades de saúde da população brasileira? A realidade apresenta-se multifacetada. Por um lado os méritos decorrentes dos programas universais no Brasil são evidentes, basta mencionar o reconhecimento internacional do Programa de DST/AIDS. Por outro lado, a extensão dos atendimentos diferenciados segundo um gradiente de preferências, no qual os clientes são diferenciados por status sócio-econômico e não por suas condições clínicas sinaliza uma direção contrária a da universalização. Esses questionamentos, adquirem matizes específicos no que diz respeito as duplas de porta de entrada dos hospitais universitários. Essas instituições e seus profissionais estão vinculados ao MEC e a governos estaduais. A preservação da excelência desses hospitais está constantemente em xeque. A desvalorização destes profissionais pelas instituições públicas e a oferta de melhores postos de trabalho pelas privadas os afeta particularmente. As tentativas de preservar esses profissionais, não conseguiram contornar, a não ser em casos exemplares, a permissão para a dupla, tripla jornada de trabalho. Nesses termos, a dupla porta de entrada pode ser vista como uma expressão arquitetônica da impossibilidade de dedicação exclusiva em face aos baixos valores de remuneração do setor público e delegação ao corpo dirigente dos hospitais para resolver o problema. Ao aceitar, para si a tarefa de buscar uma saída para resolver isoladamente as mazelas do sistema de saúde, os dirigentes dos hospitais universitários e secretários de saúde reafirmaram suas dificuldades de entendimento sobre o papel dessas instituições na rede de serviços do SUS. Os hospitais universitários são as unidades de referência do SUS, sendo inadmissível que os critérios de entrada para qualquer de seus pacientes não sejam os estabelecidos pelo município, região, unidade federada ou mesmo pela União. O funcionamento de duplas portas antepõe-se radicalmente a essa função dos HU´s. Pela porta privada são atendidos casos leves, moderados, diagnósticos que não compatíveis com o perfil de referência desses hospitais. Se batessem na porta SUS, esses pacientes seriam encaminhados para o atendimento em unidades de menor complexidade. Assim, os efeitos da dupla porta não se resumem apenas às diferenças absurdas no tempo de espera nas filas. Os rígidos critérios de triagem dos pacientes da porta SUS não são observados para a admissão dos clientes de planos de saúde. Depreende-se facilmente que a lógica dos hospitais privados que vendem serviços e admitem pacientes segundo critérios próprios colide com a inserção dos HU´s na rede SUS, ainda que seus defensores argumentem que a maior parte dos leitos está sendo utilizada pelos pacientes do SUS. O corolário da tese pro dupla-porta é que a venda de serviços para os “pagantes” reverte em prol dos “não pagantes”. Na prática, o que ocorre é uma “venda” por valores pelo menos de duas a três vezes menores do que os cobrados por estabelecimentos privados do mesmo porte, dotados dos mesmos equipamentos. Os preços pagos aos hospitais filantrópicos lucrativos de ponta são muito superiores àqueles cobrados nas duplas portas. Mas, para os defensores da dupla porta, ainda que os HU´s sejam categorizados, como de terceira linha, pelas empresas de planos privados de saúde “vale a pena”. Os valores pagos por um “não pagante do SUS” são em média três vezes menores do que os preços das internações remuneradas pelas empresas de planos de saúde. Esse raciocínio contábil de fechamento diário de caixa, que não é o adotado pelos hospitais privados, ignora o fato de que esses valores não contemplem o investimento em infra-estrutura, equipamentos e pessoal (que são os principais itens de custo dos hospitais). Considerando a urgência de encerrar as duplas filas as propostas do Ministério da Saúde estão pautadas por uma duplo esforço. A negociação com o MEC, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde e Conselhos de Saúde e a abertura de portas para o debate voltado ao encontro de alternativas para a devida valorização dos HU´s na rede SUS. Essa guinada na rota de primazia do público não nos garantirá a conquista imediata de um SUS universal, mas nos aproxima do rumo e permite-nos vislumbrá-lo.

Fonte: Blog Saúde com Dilma

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Por Lígia Bahia.

Lígia Bahia

Perguntar se o Sistema único de Saúde (SUS ) tem jeito e não ferir suscetibilidades costumava ser uma missão impossível. Qualquer menção aos problemas no atendimento público motivava o desenrolar do pergaminho de dupla face, ambas fundamentalistas.

Para os afeitos às ideias de que o mercado tudo resolve, ouvir dizer que não era bem assim quando se trata de saúde configurava uma ofensa grave. Por sua vez, os estatólatras fingiam ignorar que o direito estabelecido na Constituição de 1988 não havia se transformado em fato.
Bastou um gesto presidencial para rasgar fantasias. O desafio lançado pelo ministro da Saúde -”convencer a sociedade sobre o SUS” – o retira da condenação de amparar apenas os pobres ou permanecer como utopia imaculada. O sistema público de saúde real não foi reabilitado, mas ganhou a chance de ser submetido a uma espécie de estágio probatório. Se conseguir demonstrar eficiência e qualidade, receberá como prêmio mais recursos. Caso contrário, continuará comendo o pão que o diabo amassou. Segundo nossas autoridades, o momento é de definição: ou caminhamos para um apartheid na saúde ou organizaremos um sistema nacional de saúde abrangente e igualitário.

A oportunidade não pode ser desperdiçada. Mas, na pressa de apresentar as alternativas para “guaribar” o SUS, admite-se que o ônus da prova caiba ao sistema público. Ora, o SUS nunca foi o réu! A sociedade brasileira (supondo que o termo empregado pelos nossos governantes signifique plural de cidadão) não venera o SUS, tampouco expressa sentimentos inteiramente favoráveis em relação às empresas de planos e seguros de saúde. Quem pode fica com os dois: faz exames em laboratórios privados e traz para o médico do SUS ver; pega medicamentos do Farmácia Popular com a receita do médico do plano; tem plano mas alguns exames só são realizados em serviços públicos; sabe que a vacinação nos postos de saúde e o Samu funcionam bem. O teor de cada componente varia, mas a mistura entre público e privado é quase constante.

Atendimento público, sem gastar um tostão do próprio bolso, nem com remédios, ou privado puro – aquele obtido por quem jamais pisou em um consultório particular de médicos que trabalham também em instituições públicas – são raridades. Para substituir intuições e preconceitos por evidências é preciso desativar a premissa falsa: o SUS ficará bom quando conseguir fazer mais e melhor com menos. Não conseguimos superar gritantes desigualdades regionais, e os diferenciais dos gastos com assistência médica e hospitalar no setor privado (pelo menos quatro vezes superiores), para segmentos populacionais que moram nas regiões Sudeste e Sul, as agravam. O acesso e a qualidade mais homogêneos às ações de saúde exigem combinar estratégias para ampliar o financiamento e melhorar a gestão.

Expandir a rede de atenção primária e organizar uma rede assistencial exclusiva para o SUS, estimulando o fechamento das duplas portas de entrada de hospitais públicos e filantrópicos, ampliando as bases orçamentárias daqueles estabelecimentos que continuarão a ser subsidiados com recursos públicos, é um bom começo. O cartão de saúde é uma valiosíssima ferramenta para a gestão. Entre seus usos, o controle de prazos de espera, continuidade do atendimento e ressarcimento ao SUS.

Cuidar das instalações físicas precárias e sujas dos prédios, repor e consertar equipamentos quebrados e rever as regras invisíveis do “finge que paga e finge que trabalha” repaginarão o SUS. De onde virão os recursos políticos e financeiros para viabilizar essas pequenas, mas importantes reorientações? Os políticos, da abertura de reais alternativas sobre os rumos do nosso sistema de saúde. O ônus da prova deveria pesar para aqueles que deram errado em todas as partes do mundo. Se há dúvidas sobre para onde ir, compete aos empresários comprovarem a aptidão de suas organizações para reduzir riscos à saúde e propiciar cuidados com qualidade e menores custos para problemas crônicos e agudos,exigentes de cuidados integrais e integrados.

Ter o SUS como retaguarda para negações de cobertura e demandar mais subsídios públicos (tal como proposto recentemente pela ANS para estimular o lançamento de um plano de saúde baseado na capitalização) não vale. Os recursos financeiros jorraram nas promessas eleitorais. No calor da disputa, o mínimo empenhado foi “tomar iniciativas logo no inicio do mandato para regulamentar a Emenda Constitucional 29″. Até aqui houve cortes e, pior, certa tergiversação. Necessitamos mais recursos para a saúde pública, sejam advindos do aumento da arrecadação, da redução das cotas de sacrifício ao superávit primário e pagamento das dividas públicas das áreas sociais, sejam provenientes do redirecionamento de isenções e deduções fiscais e, no futuro, da regulamentação do fundo social do pré-sal.

Decretar uma atitude equidistante dos agentes e interesses econômicos e políticos-partidários recende sobriedade, parece chique. Mas não é política de saúde. Os lucros de uma só empresa, R$450 milhões em 2010, representaram quase o dobro dos recursos duramente batalhados para modernizar todos os hospitais universitários no mesmo período, entre os quais o Hospital de Clinicas de Porto Alegre, no qual foi atendido o médico, militante da saúde pública e escritor Moacyr Scliar. A ele renderemos justas homenagens conjugando entusiasmo e critica na análise e formulação de uma agenda renovada de alternativas para o sistema de saúde brasileiro.

LIGIA BAHIA é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E -mail: ligiabahia55@gmail.com.

Publicado no O Globo, em 07 de Março de 2011.

Fonte: Blog “Saúde com Dilma”

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De obama@gov para dilma.e.serra@org

Assunto: Plano de Saúde para o Brasil.
Estimados Dilma Rousseff e José Serra:
Como vocês viram, aprovei o projeto que universaliza o acesso dos americanos aos planos de saúde. Tínhamos entre 45 e 60 milhões de pessoas ao sol e ao sereno. Vocês achavam que não ia dar. Deu, porque recuei quando foi necessário e enfrentei a direita paleolítica à maneira do Lula, de microfone na mão, em cima de um tablado.
Sugiro que vocês aproveitem a campanha eleitoral para oferecer aos brasileiros um novo capítulo da história de vossos serviços médicos.
Quero lhes confessar que entrei na disputa pela presidência sem ideia formada a respeito da questão dos planos de saúde. Se vocês ouviram as platitudes que eu disse num debate em março de 2007, tiveram pena de mim.
Nosso sistema amparava os velhos e os pobres, mas deixava na chuva um pedaço da classe média. O de vocês oferece o serviço dos planos privados para quem tem saúde para trabalhar. Fora daí, há o SUS. Em tese, é um sistema fenomenal, verdadeira cobertura universal. Na vida real, o Brasil privatiza recursos públicos e a iniciativa privada estatiza uma parte do custo social da saúde. Como? Privatiza o público quando o cliente de um plano privado vai a um hospital público.
Estatiza o custo social quando um trabalhador desempregado ou aposentado é expelido do plano da operadora. Esse é hoje o maior buraco da agenda social brasileira.
Vocês podem virar esse jogo. Yes, you can. Concebam mecanismos por meio dos quais os planos privados e o SUS trabalhem com objetivos convergentes. Dá algum trabalho, mas não muito. Será preciso que o Estado mostre a sua mão pesada e os dentes da opinião pública.
Comecemos pelo óbvio: o ressarcimento, pelas operadoras privadas, das despesas que os hospitais públicos têm com seus clientes. Um caso recente: quem salvou a vida do cineasta Fábio Barreto foi a equipe de neurocirurgia do plantão da madrugada no Hospital Miguel Couto. Pela tabela dos hospitais cinco estrelas da rede privada (onde não há plantão de neurocirurgia), as primeiras 12 horas de atendimento de Barreto teriam custado em torno de R$ 100 mil.

Procurem saber se a operadora dele pensa em ressarcir a Viúva. (Não deixem de ver o filme do Fábio. A CIA me trouxe uma cópia pirata, adorei. A Michelle chorou, mas a Malia ficou meio desconfiada.)
A lei que determina o ressarcimento tem mais de dez anos e foi sedada pelos gatos gordos do mercado, associados aos gatos magros da burocracia. O que foi feito do Cartão SUS? Com ele cada brasileiro teria um plástico com seu histórico médico. Já se passaram 11 anos, gastaram-se quase R$ 400 milhões e o projeto está atolado. Os gatos gordos e os gatos magros esterilizaram a iniciativa porque ela racionaliza o serviço da saúde pública. Para eles, governo ideal é aquele que tem ministros caçando holofotes, dando serviço aos empreiteiros que constroem hospitais e aos mercadores de equipamentos.
Quando os hospitais decaem e as máquinas apodrecem, começa-se tudo de novo.
Um último palpite: sugiro que procurem a professora Ligia Bahia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu li umas coisas dela e garanto: entende do que fala, diz o que pensa e sabe se expressar.
Atenciosamente
Barack Obama

Elio Gaspari é jornalista

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