Cinara Lobo
A camionete do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação deixou o asfalto e cortou 40 quilômetros na estradinha de chão, embrenhando pelo Cerrado quase virgem, no município de Urucuia, em Minas Gerais. O objetivo de nossa viagem era verificar a aplicação dos recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola e compreender a razão pela qual algumas escolas terminam não gastando o dinheiro que o governo federal repassa. Para chegar às unidades de ensino situadas na zona rural, atravessamos quilômetros sem avistar nenhuma casa. Enquanto o carro desviava dos buracos e subia os mata-burros, eu me perguntava: “E se ele quebrar aqui, como voltamos? Como vamos pedir socorro?” Não tinha sinal de celular.
Quando a camionete parou, olhei para todos os lados. Não encontrei a escola. Foi preciso olhar novamente para ver as salas de aula atrás do pé de manga. Uma casa velha, uma parte desfazia-se como se estivesse abandonada. Na entrada, as crianças brincavam de queimada. Ao lado, outras jogavam futebol, num campinho de terra, improvisado. Logo nos cercaram. O mais falante perguntou a minha amiga:
– Você é a “supernisora” que veio tomar a minha leitura?
– Sou eu mesma. E você já sabe ler?
– Sim, estudei muito! Li muitas letras! Treinei demais. Eu estou pronto para você me tomar a leitura. Toma agora – e segurou o crachá da minha colega e leu: FNDE.
Depois ficamos sabendo que a professora inventara a história da “supernisora”. Precisava de um estímulo para fazer os meninos estudarem, então lhes disse que um dia apareceria naquele lugar uma supervisora para tomar a leitura de todos. Se eles não soubessem ler, a supervisora iria afastá-la da escola. Por amor a professora, eles estudaram. A mentira pode parecer injusta, pois sempre é injusto mentir para criança, mas acreditem não havia nenhuma razão mais próxima, nenhuma justificativa mais racional e convincente além dessa, a da supervisora. Eu mesma procurei outra razão e não encontrei. Procurei nas paredes da escola, nas telhas de barro que cobriam o teto, na poeira que levantava do chão enquanto as crianças brincavam, na simplicidade do mobiliário, na perspectiva do lugar. Não encontrei.
O Brasil ainda padece do mesmo mal que o acomete desde o descobrimento: as longas distâncias e a incapacidade administrativa de vencê-las. Não é um problema muito difícil de resolver, mas que precisaria de mais planejamento e capacidade estatal. Os programas do governo federal, na área de educação, são desconectados, casuísticos, pulverizados, padronizados e, por todas essas razões, de baixo impacto. O exemplo explica melhor.
Na mesma viagem, fomos para outra escola na zona rural, distante 70 km de Arinos, sendo 40 km de estrada de chão. No período de chuva, a escola fica completamente isolada porque o rio sobe. Não possui energia elétrica. Para ela, o governo federal havia destinado R$ 33 mil do Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE). O valor não compreendia tudo que a União havia destinado para escola naquele ano, mas vamos analisar apenas o caso dos R$ 33 mil. Os valores deveriam ser usados para melhorar rendimento escolar, pois a nota do IDEB havia ficado muito baixa. O PDE foi criado com o objetivo de planejar ações de longo prazo que contribuíssem para melhorar rendimento escolar. O planejamento era feito pela própria comunidade com o apoio da Secretaria de Educação. Quando cheguei à escola, perguntei a professora como os recursos tinham sido usados. E ela me apontou duas marquises. Não entendi. Mas ela me explicou. Entre uma fileira de salas de aula e outra, havia um vão. Na época da chuva, os alunos se molhavam atravessando de um lugar para outro. Por isso, ela construiu uma cobertura. Com o restante do dinheiro, equipou a escola: duas geladeiras, um DVD, um computador… Mas lembrem-se: a escola não possuía energia elétrica! A diretora da escola também não sabia explicar qual a relação da marquise com melhoria do IDEB, tampouco dos eletrodomésticos que não funcionavam.
Para que os programas do governo federal produzam resultados efetivos precisam se aproximar da realidade da escola. Mas elas são inúmeras, as mais diversas. Por isso, a dificuldade de planejar, a partir de Brasília, qualquer programa. A alternativa é o próprio município pensar soluções locais, aproveitando a experiência e o saber da comunidade, e envolvendo-a na formulação e execução das ações. Para tanto, é necessário existir maior coordenação e colaboração entre os entes federados, o que na literatura de políticas públicas, chama-se capacidade estatal.
A descentralização de recursos é necessária, mas como explica a professora Marta Arretche (1996), ela foi feita sem um planejamento, sem que se corrigissem os desníveis na capacidade administrativa dos municípios, o que resultou no reforço a heterogeneidade na prestação dos serviços sociais. O modelo do federalismo brasileiro faz com que parte significativa dos recursos continue concentrada na União, enquanto os gastos dos municípios e estados estão direcionados para o pagamento de salários e outras despesas de manutenção. Não existe um Sistema Nacional de Educação que defina papéis e responsabilidades, direcionando o que cabe a cada ente federado executar para garantir o acesso a educação com qualidade. Por todas essas razões, as populações que mais sofrem as conseqüências desse modelo de gestão dos recursos públicos da educação são aquelas que vivem em áreas rurais ou em locais que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) definiu no Censo Escolar como localização diferenciada: quilombolas, terras indígenas e assentamentos.
A padronização dos programas federais desconhece e ignora a cultura das comunidades. Não apenas os recursos são mal distribuídos, as responsabilidades estão mal definidas, como os desenhos dos programas são insensíveis às diferentes culturas que convivem no território nacional. No governo de Fernando Henrique Cardoso, foi desenvolvido o Programa de Apoio Tecnológico (Resolução do FNDE nº 5, de 26 de maio de 1997), que distribuía recursos para as secretarias de educação, a fim de que adquirissem para as escolas os equipamentos necessários para assistir às vídeos-aula produzidas pela TV Escola: televisor, antena parabólica, videocassete, estabilizador de voltagem e fitas VHS. Segundo consta no Relatório de Atividades do FNDE (BRASIL, 1997), no período de 1995 a 1997, foram transferidos R$ 51,4 milhões por meio do programa, beneficiando 34.249 escolas da rede pública municipal e estadual. Visita de monitoramento realizada pelo FNDE, em 1997, a comunidade indígena encontrou o equipamento na casa do chefe da tribo, que o usava para assistir as novelas da Rede Globo. A simples transferência de recursos não significa que o dinheiro será empregado nas finalidades traçadas pelo governo federal. As comunidades beneficiadas precisam entender os objetivos que se deseja atingir, assim como os entes subnacionais devem participar da formulação e gestão dos programas.
O problema é mais complexo, ainda. Conforme a Constituição de 1988, estados e municípios possuem a mesma autonomia que a União. Não existe subordinação entre eles, mas competências diferentes. No campo das políticas sociais, diz o texto constitucional, elas são complementares, ou seja, os três níveis governamentais devem atuar em parceria e de forma coordenada para prover os serviços públicos. Na prática, cada um tem se encarregado de uma parte do ensino: os municípios, do fundamental; os estados do ensino médio, e o governo federal do superior. Em razão disso, quando o governo federal elabora e descentraliza recursos para um programa, os entes subnacionais podem escolher executar ou não, afinal eles são autônomos! Podem, por isso, realizar o programa conforme script diferente do inicialmente pensado pelo formulador da política. E isso acontece muitas vezes.
Visitei um município em Tocantins para verificar como eram usados os recursos do programa Mais Educação. O programa criado no governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva tinha o objetivo de incentivar a educação em período integral. A professora abriu a pasta, me mostrou todas as notas fiscais, os pagamentos, extratos bancários… A burocracia estava perfeita. Então, eu disse: “Posso visitar a sala de aula?” Logo notei que o pedido a incomodou. Não havia a sala de aula. As crianças estavam reunidas em baixo de uma árvore. Não mais que cinco crianças, enquanto a professora fazia a leitura.
No Tocantins, as escolas públicas são muito bem equipadas. Não sei se o padrão se repete em todo estado, mas, em Palmas, elas são muito bonitas. Possuem quadra de esportes, piscinas olímpicas, bibliotecas, salas de leitura, salas de aula montadas com recursos áudio visuais… Por isso, o governo separava “educação em tempo integral” e “Mais Educação”. Para ele, na primeira categoria estavam as escolas realmente equipadas para receber os alunos em jornada integral. Na segunda, aquelas que não tinham condições físicas para estender o tempo de permanência do aluno na escola, mas que poderiam desenvolver atividades complementares no contraturno. Por isso, encontrei poucos alunos participando do Mais Educação.
O governo municipal entendeu o programa como atividade complementar, não como parte da grade horária oficial da escola. Ele não usou os recursos indevidamente, mas, para sua gestão, para ser possível receber os alunos no contraturno, era preciso dispor de estrutura física escolar. Para o governo federal, a estrutura física poderia ser improvisada por meio de parcerias com igrejas, associações de classe, clubes esportivos etc. Para resolver essas diferentes visões sobre “educação integral” seria preciso sentar e conversar, dialogar. Os entes federados não costumam dialogar antes de gastar o dinheiro. Simplesmente, saem gastando.
Na Ciência Política, há um nome sofisticado para isso: dizemos, que falta capacidade estatal, ou seja, falta maior coordenação das ações entre os entes federados. Mas, eu costumo dizer que a teoria da Ciência Política é muito sofisticada para explicar o Brasil. Precisamos de um português mais grosseiro para interpretá-lo. Por isso, deixo aqui esses relatos, em palavras miúdas, para que o leitor compreenda os problemas da educação no Brasil e as dificuldades para superá-los. Também que compreenda que nem sempre a questão é mais dinheiro para educação, mas melhorar a gestão dos gastos.
Fonte: A Voz da Notícia