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O mundo não será normal

Cinara Lobo

As carreatas em prol da abertura do comércio clamam pela volta ao normal. No fundo, desejam não apenas o retorno do comércio, querem um mundo que não existe mais. Os shoppings podem reabrir, mas nunca mais serão os mesmos. Seus frequentadores, classes média e alta, com poder aquisitivo para consumir, instruídos, bem informados, não vão arriscar a vida por um vestido ou sapato novo. Podem até retornar as compras, mas de forma bem mais comedida e objetiva. Irão ao shopping como quem vai a uma ferragista: “Tem prego?” Mas o lucro dos shoppings vinha do consumo desnecessário, da praça de alimentação, dos cinemas, do lazer. Fazer compras e lazer se confundiam. Não se confundirão mais.
O consumo fazia sentido quando havia onde exibir o que se consumia. No sistema moderno, havia um arranjo, uma relação complementar, entre consumo e vaidade, e trabalho, e lazer. Explico. Os shoppings, assim como os restaurantes, bares, teatros, eventos, festas, enfim, tudo que envolvia grandes multidões funcionavam como o salão do palácio de Versalhes. Consumia-se e exibia-se. Ninguém consome para tranca-se em casa, olhando-se no espelho. Os narcisistas doentes são raros. A grande parte das pessoas veste-se para alguns. Às vezes, para uma única pessoa. Situação também rara. Quando as portas reabrirem, não seremos devolvidos a uma situação de normalidade completa. Como uma viagem no tempo, seremos lançados num outro tempo. Não estaremos de volta a um ambiente totalmente seguro, que possamos passear a tarde dos finais de semana observando vitrines. Experimentando descompromissadamente bolsas, sapatos, roupas, óculos… Seremos lançados numa objetividade demoníaca que consumirá as entranhas de nossas futilidades inocentes. De repente, só o fundamento é possível.
Se a relação vaidade, consumo, lazer estará quebrada; também a relação vaidade e trabalho. O home office se imporá inevitavelmente. Não apenas porque as empresas descobriram que é mais barato e viável, mas porque as grandes organizações, assim como os shoppings, continuarão a representar risco de vida. Em casa, teremos mais tempo para nossas famílias, nossos Hobbies, nossos cachorros… Teremos mais tempo para ouvir nossa alma. De tudo que fomos retirados, nos últimos anos, e para o qual não sobrava sequer os finais de semana, agora seremos devolvidos. Serão pequenas reuniões para os amigos mais próximos e íntimos. Longos almoços e jantares com a família e os vizinhos. Serão finais de semana com seus filmes e livros. Para aqueles que não se suportam, o mundo se tornará bem mais insuportável. Não pensem de forma alguma que são poucos. É muito difícil conviver com seu silêncio e a solidão. Exige um tempo de aprendizagem. O ficar em casa é difícil para quem não está acostumado. Ouvi de muitos amigos de trabalho que eles preferiam enfrentar, diariamente, horas de engarrafamento a trabalhar em casa. No trabalho, tinham os amigos para conversar, trocar idéias, dividir o como fazer. No intervalo do almoço, iam com a turma para o restaurante divertirem-se e exibirem-se. O local de trabalho também era o lugar onde você mostrava o que consumiu no final de semana. Sem esse local, um pijama mesmo serve.
Percebem que vários elementos que marcam a modernidade, que são uma invenção da modernidade, começam a ruir? As grandes organizações, os prédios com dezenas de andares, os shoppings, as metrópoles com alta densidade humana, a organização do trabalho… Por isso, a volta do comércio não é suficiente para que tudo retorne a normalidade anterior. Durante um bom tempo, vamos esperar por uma vacina que nos devolva a inocente segurança e, até lá, aprenderemos a viver de forma diferente. Ouso dizer que, em longo prazo, se a vacina demorar muito para ser inventada, as metrópoles mudarão. Os apartamentos começarão a ser esvaziados. Por que residir próximo ao trabalho, se agora você trabalha de home office? Por que morar num apartamento, se ele não oferece espaço e o conforto mínimo que você precisa? Se você não pode mais usufruir da área de lazer que foi interditada? Se ao ficar doente por Coronavírus você foi impedido de entrar no seu condomínio pelo síndico do prédio? Se moradores do seu prédio também fizeram motim para que a cuidadora de seu pai não entrasse para trabalhar? Se, afinal, residir em prédio não é seguro! Toda hora, entram e saem pessoas estranhas! Mas nada como uma casa, com seus jardins e pomares! Onde é possível ver o verde! Ter um cachorro! Espalhar os meninos! Sentir o sol! Reunir os familiares e amigos próximos! A casa é muito mais segura, pois nela entra apenas quem você permitiu. Não existem elevadores, perigosíssimos, onde somos obrigados a respirar o mesmo ar. A casa volta a ser o lugar seguro e íntimo.
Veja leitores que, com poucas palavras, esvaziamos os shoppings, mudamos as relações de trabalho e, agora, acabamos com os grandes edifícios e o design das metrópoles. Mas os argumentos não são suficientes para convencer aqueles que acham que basta reabrir o comércio e seu mundo retornará ao normal. Então, vamos continuar nosso exercício de imaginação. Pensem nas grandes festas esportivas, nos estádios de futebol, nas grandes competições que já estão adiadas… quando retornarão? Pense na economia que gira em torno desses eventos, na quantidade de pessoas empregadas. Agora, imagine que boa parte disso tudo, principalmente, os pequenos clubes, será desmontada a conta gotas nos próximos meses. Inevitavelmente. Sem vacina, não existe Olimpíadas, Copa América, Copa do Mundo, Brasil Open de Tênis… Nem mesmo o buteco lotado onde a gente reunia-se com os amigos para torcer pelo timão!
Tudo está interligado e funciona como um sistema. Um vírus minúsculo entrou no sistema e começou a desmontá-lo. O vírus não está apenas no organismo das pessoas, ele está no sistema que inventamos. Ele minou as bases da modernidade. É um exagero? Pode ser, mas, como diria Weber, meu papel é exagerar.

Cinara Lobo – Especialista em políticas educacionais

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